A FREGUESIA - Curiosidades
 

Breve viagem em volta de um episódio singular na Junqueira oitocentista

Há pouco tempo, enquanto buscávamos informação sobre o passado desta região, veio ter às nossas mãos o livro O Concelho de Vila do Conde e os Inquéritos Paroquiais de 1825 e 1845 , da autoria de A. Franquelim S. Neiva Soares (Póvoa de Varzim, 1974). Nele, o autor revela-nos a natureza e o conteúdo de um conjunto de documentos – inquéritos paroquiais e devassas – redigidos ao longo do séc. XIX e relativos a parte das actuais freguesias do nosso concelho. Entre elas figura a da Junqueira, documentada por dois inquéritos paroquiais, um realizado em 1825, o outro em 1845.

É precisamente no mais antigo dos dois que se encontra o motivo próximo deste nosso artigo.

Numa breve descrição introdutória, o visitador-inquiridor refere D. Ana Eufrásia e Bento José Rodrigues como «senhores [do] mosteiro e quinta que foram dos padres Crúzios» . Depois, dá-nos a conhecer que «é pároco dela [da Junqueira] João Gomes da Silva, de idade de 35 anos, natural desta freguesia e reside há 5 anos provido por apresentação do dito Ilustríssimo Bento José Rodrigues e D. Ana Eufrásia,» . Logo a seguir, o inesperado: «a quem o dito pároco tem sido ingratíssimo, pois umas vezes, nos dias festivos, diz a missa no altar do Sacramento, que fica do lado esquerdo da igreja, donde do coro se não vê o sacerdote; outras vezes vem dizê-la a um dos últimos altares que fazem alas pela igreja, para que a família ilustre daquela casa não veja do coro o sacerdote; tudo com o fim de se «bandijar» (bandear) aquela ilustre família a quem deve o ser pároco, deixando de dizer missa no altar maior;» . E, caso ainda restassem dúvidas sobre a índole do sacerdote, «é pároco de muito mau porte e amigo da desordem. Frequentou Filosofia, Teologia e Retórica.» . Assim mesmo!

Agora, alguns traços do visitador-inquiridor: Francisco Félix Henriques Brandão da Veiga Leal, de quem o autor da obra nos adianta ser poveiro de nascimento, abade de Santo Estêvão de Vila Chã do Marão, no concelho de Amarante, e «amigo do vinho em algum excesso» , segundo testemunho de um visitador da sua paróquia em 1818 (aqui, temos o visitador "visitado"...).

Vinte anos mais tarde, no inquérito de 1845, que encontramos nós?

Reparem no seu artigo 4º. Começa assim: «O pároco desta freguesia chama-se João Gomes da Silva;» . Continua então no seu posto... E, quase a rematar: «A sua conduta moral, civil e política é a melhor possível, e sempre o foi;» . Curioso, não é? Adeus ingratidão, adeus muito mau porte, adeus amizade da desordem... Um autêntico volta-face!

Uma dúvida agora: porquê esta disparidade?

Voltemos ainda ao tal artigo 4º do inquérito de 1845. Entre a citação que o abre e esta última que quase o remata, figura o seguinte: «em 1828 foi culpado por afecto ao sr. D. Pedro e à Carta; e desde 28 de Outubro do dito ano até 30 de Março de 1834 não residiu por estar homiziado;» . Aqui está, a nosso ver, a chave para a compreensão da singular reviravolta.

Em 1825, cinco anos volvidos sobre a revolução liberal que derrubara o absolutismo e a ocupação britânica em Portugal, os ânimos estavam provavelmente ao rubro – o tempo devia ser sobretudo propício ao afrontamento de opiniões. Uma vez que devia ser já apoiante da causa liberal, o padre João Gomes da Silva contaria então com a oposição de duas forças, ambas com certeza saudosas do Portugal do "Antigo Regime": os senhores do mosteiro, seus antigos protectores, que, embora bem colocados para assistirem às cerimónias religiosas – nada menos do que num varandim junto ao coro alto da igreja –, estão nelas marginalizados por esse insólito jogo de esconde-esconde em que se vêem envolvidos pelo seu antigo protegido; e o visitador-inquiridor, apenas de passagem, mas com poder suficiente para deixar do visitado um testemunho durável e fortemente desabonador. Mas tempos ainda mais difíceis viriam para o pároco da Junqueira: em 1828, D. Miguel reinstala no nosso país o regime absolutista com um golpe de estado. Nos anos que se vão seguir, os liberais serão ferozmente perseguidos e o vocábulo «homiziado» quase não dá margem para dúvidas: o padre João Gomes da Silva andou seguramente fugido à justiça miguelista por ser um "malhado", isto é, por ser um simpatizante das ideias liberais. E porque vem a talhe de foice, relembramos aqui os nomes de dois outros "malhados" perseguidos, mais célebres: Almeida Garrett e Alexandre Herculano, ambos integrando a expedição militar liberal comandada por D. Pedro IV que desembarcará em 1832 na praia de Pampelido e que virá a derrotar definitivamente o absolutismo em 1834.

Voltando ao pároco de há cento e setenta e seis anos: ignoramos se, durante a "usurpação miguelista", esteve a monte ou chegou a conhecer o exílio; no entanto, o visitador-inquiridor de 1845 deixa bem claro que esses anos negros deixaram no padre João da Silva marcas profundas: "Pelos trabalhos tem sofrido algumas ruínas em sua saúde; porém já se julga quase habilitado para continuar". O autor do inquérito de 1845 e visitador era Domingos da Soledade Sillos, bracarense, no tempo pároco e arcipestre de Vila do Conde e, também ele, liberal assumido. Faz sentido, não faz?

Prof. Abílio Santos

 
 
voltar
 
A FREGUESIA - Curiosidades